MEMORIAS DA CALÇADA
"A memória mais profunda que tenho da casa do tio (Dr. Frederico de Freitas) é do quarto da minha avó, sua mãe. Era um quarto onde cabia toda a gente. Estava preparado para que ela se sentisse bem, devido à sua frágil saúde nunca de lá saia, dai que nos reuníssemos à volta dela.
Lembro-me do armário dos brinquedos, ao fundo, de onde saiam os mais diversos entretenimentos para manter distraída a malta mais nova. O telhado, ao nível das janelas era atração proibida.
A pequena salinha onde ela recebia todos, que ficava a um cantinho do quarto, era, para mim, muito gostoso.
Lembro-me que, todos os dias, antes de ir almoçar, o tio subia as escadas para se encontrar com a sua mãe e saber do seu estado de saúde. O carinho com que pegava na mão dela e lhe via o pulso fascinava-me. Muito quieta e atenta observava religiosamente a situação e procurava repeti-la nas bonecas.
Éramos muitos netos e bisnetos, pode dizer-se de duas épocas. Eu era a mais nova dos mais velhos e a mais velha dos mais novos, frequentemente responsabilizada pelas traquinices dos juvenis.
Fazia muita companhia a minha avó quando lá estava, que era quase todos os dias. Lembro-me dos grandes jantares. Era muita gente, familiares e amigos distribuídos por duas mesas em divisões separadas. A grande mesa dos adultos e ao lado a mesa pequena dos mais jovens. Muitas vezes fui para a mesa dos grandes fazer número. Não gostava muito, pois tinha de me portar muito bem: não falar e ter em conta todos os meus gestos - perdia assim uma certa liberdade.
Éramos sempre recebidos com muito carinho pelos tios. A calçada, como todos chamávamos à casa, era um refugio para a família. Uma casa muito grande cheia de recônditos misteriosos…
Nos salões, aonde era proibido os pequenos entrarem, corríamos à socapa para tocar numa gaita minúscula que estava no meio de muitas outras coisas em cima duma grande arca que havia ao fundo. Dado o toque, voltávamos a correr, não fossemos apanhados.
Já mais crescida fazia companhia a minha avó que me ensinava renda e malha, o que me ocupava agradavelmente as horas lá passadas.
A tia Marieta governava a casa com mão firme , orientando tudo e conseguindo uma gestão impecável. Na mesa do chá havia todos os dias lugar para mais um. A canasta e o bridge à noite eram motivo de atração para os muitos amigos e familiares que os meus tios recebiam.
Lembro-me que num dia de anos a tia disse gostar de canecas. Acharam graça e de hora a hora ela recebia uma de presente. Creio ter sido assim que começou a grande coleção que hoje podemos apreciar.
Cresci assim, numa casa única que é hoje, merecidamente, o resultado do espírito colecionador de um homem, que foi ele também, único.
Faz e fará sempre parte da minha vida, a maneira excecional como o tio e a tia contribuíram para a educação de todos nós, os sobrinhos que deambularam em sua casa.
Uma saudade sempre grande e boa da Ana."
Lisboa, 31 de agosto de 2019
Ana Maria