Ophiussa ex machina é um projeto que se baseia num artigo do diário de Lisboa dos anos 20, num livro sobre a calçada portuguesa, e na lenda da fundação da cidade e das sete colinas.
A Lenda da Fundação de Lisboa, incluída n’As Lendas da Nossa Terra, de Gentil Marques, conta a história da chegada de Ulisses ao lugar onde hoje se encontra edificada a cidade de Lisboa. Conta a lenda que este território era uma terra de serpentes, impenetrável e inóspita para forasteiros inesperados, governada por um ser mitológico meio mulher meio serpente. Ofiúsa era como se chamava, e como era conhecido o território português na antiguidade grega. Quando o navegador chegou e quis assentar arraiais deparou-se com a necessidade de persuadir a rainha a aceitar a sua proposta, prometendo prosperidade e florescimento eternos. A rainha deixou-se seduzir por Ulisses e com ele fundou Ulisseia, a cidade mais bela do mundo. Passado algum tempo o navegador decide zarpar em segredo, e sentenciou a rainha com o maior dos seus desgostos, quando se apercebe que Ulisses fugiu. Motivada pela traição, tenta alcançá-lo sem sucesso e dentro de todo aquele desespero, fúria e mágoa, deixou atrás de si o rasto do movimento contorcido e serpenteante do seu corpo. A rainha das serpentes, exausta e abandonada, acaba por sucumbir ao desgosto, deixando para sempre a sua marca na paisagem de Lisboa: as sete colinas.
Sempre que passeamos pela cidade estamos continuamente a encontrar pormenores, são detalhes que nos permitem imaginar a dinâmica que existe entre o que Lisboa pode representar e o que realmente é, ou encerra em si mesma, independentemente de sermos habitantes locais ou estrangeiros.
Pornografia era o título do artigo que se podia ler na primeira página do Diário de Lisboa de 30 de abril de 1921. Joaquim Manso (diretor, proprietário e editor do jornal) apresenta-nos uma série de reflexões, opiniões e juízos sobre o quotidiano moderno da cidade e o estado da literatura do seu tempo. O escritor e ensaísta, recorrendo a metáforas e a uma linguagem literária altamente sofisticada, revela-nos uma Lisboa “que se sensualiza com tal ardor de febre que até parece que as pedras da calçada faíscam lume.”
No livro Empedrados Artísticos de Lisboa, de Eduardo Martins Bairrada, podemos encontrar uma série de itinerários sobre a calçada portuguesa na cidade. A publicação contextualiza e apresenta algumas notas sobre a história da calçada, bem como o levantamento de desenhos e estruturas indispensáveis para a criação dos motivos que compõem estes “arrendados de via pública”. “Será que existiu ou existe ainda hoje indiferença do lisboeta pelos atapetados das suas ruas e praças (...)?” é a pergunta que se destaca no início do livro.
É impossível ficar indiferente à diversidade dos desenhos e padrões que podemos encontrar na calçada, quando olhamos o chão que pisamos em Lisboa. Por outro lado, quando passeamos pelas ruas da cidade é muito comum encontrarmos pedras soltas, partes de calçada que se desprendem e deformações da superfície, elevações ou rebaixamentos, que derivam das cedências do pavimento, causadas pelo crescimento das raízes das árvores ou por outros fenómenos naturais ou imaginários. Num jogo sinuoso entre a realidade e a ficção podemos associar esta desagregação constante das pedras da calçada à energia latente da rainha, que outrora incorporou a terra e mantém a pele da cidade viva.
Ophiussa ex machina surge num contexto muito próprio. Compreende uma instalação de desenho, escultura e objetos encontrados, reunidos a partir da recuperação de alguns dos itinerários do livro Empedrados Artísticos de Lisboa. Durante os passeios foram recolhidas pedras soltas da calçada, captadas imagens, e outros elementos que se consideraram pertinentes para a criação de uma cartografia da memória ou arqueologia do passeio. Por outro lado, tendo em conta as relações que se estabelecem entre os objetos, as pessoas e os lugares, o recurso à escultura ou ao desenho estabelece relação com a paisagem e com os objetos do quotidiano, bem como com os lugares da cidade, através dos quais o entendimento tridimensional da cidade se complementa com a textura visual urbana.
Ricardo Barbeito, 2020.